A Judicialização da Saúde no Brasil

Considerações Iniciais

A judicialização da saúde no Brasil não é um fenômeno recente, mas seu crescimento exponencial tem colocado em xeque o frágil equilíbrio entre o direito individual à saúde e a viabilidade financeira do sistema, tanto público quanto privado. Pacientes recorrem ao Poder Judiciário em busca de acesso a medicamentos de alto custo, cirurgias complexas, exames sofisticados e tratamentos inovadores, muitas vezes não contemplados nas diretrizes das políticas públicas ou negados por operadoras de planos de saúde.

Esse movimento reflete não apenas a insuficiência das coberturas previstas, mas também a crescente expectativa da população por respostas mais ágeis e eficazes às suas demandas de saúde. A complexidade dessa questão transcende o âmbito jurídico e adentra terrenos éticos, econômicos e administrativos.

Até que ponto uma decisão judicial pode garantir o direito de um paciente sem comprometer a equidade no atendimento à coletividade? Como os tribunais conciliam a necessidade de cada indivíduo com a limitação de recursos que deve ser administrada de forma sustentável?

Além disso, quais os impactos desse fenômeno para os profissionais da saúde, que muitas vezes se veem pressionados entre cumprir protocolos regulatórios e atender às exigências judiciais, e para as instituições que precisam reorganizar suas finanças diante de um cenário de crescente imprevisibilidade?

O debate sobre a judicialização exige, portanto, uma abordagem que ultrapasse a simples contraposição entre direito à saúde e limitação orçamentária. É preciso reconhecer que a solução não está na supremacia de um desses polos sobre o outro, mas na construção de mecanismos que harmonizem o acesso aos tratamentos necessários com a viabilidade financeira do sistema.

Isso passa por medidas como a qualificação das decisões judiciais por meio de pareceres técnicos, o fortalecimento das instâncias de mediação e conciliação, além da revisão criteriosa das políticas de incorporação de novas tecnologias.

Sem um olhar estratégico e multidisciplinar, o risco é transformar o Judiciário em um canal paralelo de gestão da saúde, distorcendo prioridades e comprometendo a equidade do sistema. O desafio está em garantir que a justiça seja, de fato, um instrumento de equilíbrio e não um fator de desequilíbrio para o setor.

O Que Diz a Constituição e Como o Judiciário Atua?

A saúde é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 196 dispõe:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Esse dispositivo tem sido amplamente interpretado para justificar decisões que determinam que o Estado forneça tratamentos de alto custo ou não incorporados ao SUS. Além disso, a Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) reforçam essa garantia, estabelecendo critérios para que tais demandas sejam atendidas judicialmente.

Entretanto, a crescente demanda judicializada tem gerado questionamentos sobre a viabilidade dessa prática a longo prazo. Em muitos casos, decisões favoráveis a pacientes específicos podem comprometer os recursos financeiros do sistema de saúde, retirando investimentos de políticas públicas mais abrangentes.

Judicialização no Setor Privado e os Planos de Saúde

A judicialização também tem um impacto significativo no setor privado, especialmente para as operadoras de planos de saúde, que enfrentam um volume crescente de ações questionando negativas de cobertura. Grande parte dessas demandas envolve tratamentos não listados no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, que estabelece os serviços obrigatoriamente cobertos pelos planos. A controvérsia se intensificou após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que consolidou o entendimento de que o rol da ANS é taxativo, ou seja, os planos não são obrigados a custear procedimentos não incluídos na lista.

Contudo, a regra comporta exceções, permitindo que, em circunstâncias específicas, determinados tratamentos sejam concedidos judicialmente. O problema reside na falta de critérios uniformes na análise desses casos, o que resulta em decisões conflitantes e imprevisíveis. A insegurança jurídica gerada afeta não apenas as operadoras, que precisam recalcular seus riscos e reajustes, mas também os beneficiários, que ficam em uma zona de incerteza quanto à efetiva cobertura dos seus tratamentos. O desafio, portanto, é encontrar um equilíbrio entre a previsibilidade regulatória e a necessidade de flexibilização em casos excepcionais, sem comprometer a sustentabilidade do setor nem inviabilizar o acesso dos pacientes a terapias inovadoras.

Impactos para Profissionais e Instituições de Saúde

Os profissionais da saúde são diretamente afetados pela judicialização, uma vez que podem ser chamados a emitir laudos médicos, testemunhar em processos ou até mesmo enfrentar questionamentos jurídicos sobre condutas adotadas. Hospitais e clínicas, por sua vez, lidam com dificuldades na gestão de recursos e incertezas quanto ao custeio de procedimentos.

Além disso, há o risco da chamada “defensiva médica”, em que profissionais passam a solicitar exames e tratamentos desnecessários para se protegerem de eventuais demandas judiciais, encarecendo ainda mais o sistema de saúde.

Perspectivas para o Futuro

A solução para a judicialização da saúde exige uma abordagem multifacetada, que combine a gestão estratégica das políticas públicas com o fortalecimento da regulação e a ampliação de mecanismos eficazes de resolução de conflitos. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem um papel central nesse processo, regulando o setor para equilibrar os interesses dos consumidores e das operadoras, garantindo previsibilidade e segurança jurídica. No entanto, a regulação por si só não basta; é necessário um esforço coordenado para aprimorar os processos de decisão administrativa e evitar que o Judiciário se torne a única via para a obtenção de tratamentos e procedimentos.

Nesse sentido, a mediação extrajudicial surge como uma ferramenta essencial para a redução do volume de litígios e a construção de soluções mais ágeis e adequadas às necessidades dos pacientes. Iniciativas como as Câmaras de Mediação e Conciliação vêm ganhando espaço, promovendo diálogos entre as partes antes que os conflitos se transformem em ações judiciais. Além disso, a revisão dos protocolos de incorporação de novas tecnologias ao SUS e aos planos de saúde privados busca tornar os critérios de cobertura mais claros e alinhados com a sustentabilidade do sistema. O desafio está em equilibrar inovação, acesso e responsabilidade financeira, garantindo que a saúde continue a ser um direito viável e efetivo para a população.

Conclusão

A judicialização da saúde é um reflexo da tensão entre direitos individuais e a capacidade do sistema de suportar demandas crescentes. Quando um paciente recorre ao Judiciário para obter um tratamento, está, em essência, reivindicando um direito fundamental. No entanto, cada decisão judicial que obriga o fornecimento de um medicamento ou procedimento específico também impacta a gestão pública e a equidade na distribuição dos recursos.

Esse fenômeno não pode ser analisado apenas sob a ótica do acesso à saúde ou da limitação orçamentária; é preciso compreender que ambos são componentes de um mesmo desafio estrutural, que exige uma abordagem criteriosa e baseada em evidências.

A solução, portanto, não deve partir de uma dicotomia simplista entre o direito à saúde e a responsabilidade fiscal, mas sim de um olhar técnico e jurídico que busque o equilíbrio entre esses dois pilares. O desenvolvimento de protocolos mais transparentes, a ampliação de instâncias administrativas para resolução de conflitos e a qualificação da fundamentação das decisões judiciais são caminhos para minimizar distorções.

Além disso, o papel do advogado especializado se torna essencial para garantir que as ações judiciais sejam utilizadas de forma estratégica, priorizando casos realmente necessários e bem embasados, sem comprometer a sustentabilidade do sistema ou criar precedentes que fragilizem a gestão da saúde pública e suplementar.